Chamada de artigos - Dossiê: Crise do Cuidado, Crise da Reprodução Social, Crise do Capitalismo? (Estudos de Sociologia, vol.1, n. 29, 2024.1)

01-11-2023

Organizadoras: Anna Bárbara A´raújo (UFRN), Cecy Bezerra de Melo (UFPE) e Marcele de Morais (UFPE).

O presente dossiê busca discutir a crise da reprodução social e a crise do cuidado a partir da sua relação com a crise do capitalismo. O tempo presente tem nos apresentado uma realidade na qual o campo trabalho se expande cada vez mais em decorrência de uma economia neoliberal. O neoliberalismo, além de orientar uma superprodutividade, em um contexto onde ser produtivo se confunde com ser sobrecarregado, torna responsabilidade individual o cuidado de si e dos outros em uma conjuntura de trabalhos parciais, temporários, terceirizados e subcontratados. Dentro desse contexto de crise, ocorre a privatização do cuidado e de transferência de tarefas domésticas. Esses trabalhos asseguram a sustentação da reprodução da sociedade, porém, sofrem uma pressão crescente devido às contradições inerentes ao modo de produção neoliberal. Em suma, o dossiê visa pesquisas teóricas e empíricas que versem sobre as relações entre crise da reprodução social e crise do capitalismo.

A chamada de artigos está aberta até 29 de fevereiro de 2024 e serão aceitos textos originais em português, espanhol e inglês.

As contribuições devem ser submetidas através do sistema online da revista: https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/revsocio/about/submissions

Abaixo você encontra a proposta detalhada do dossiê

Talvez nenhum evento mundial na era contemporânea tenha conseguido chamar tanta atenção para a reprodução social, que abrange o trabalho doméstico e de cuidado, quanto a pandemia de covid-19. A provisão de cuidado e de trabalho doméstico se tornou, durante este período, foco de intenso debate público, dando luz a uma crise já debatida há décadas pelas feministas, a chamada crise da reprodução social, que constitui, segundo a literatura no campo, um dos aspectos da chamada crise do neoliberalismo (Guimarães; Hirata, 2020; Han, 2022; Hochschild, 2008; Tronto, 2013). De acordo com Marx em “O Capital” (1867 [2013]), a força de trabalho é a “mercadoria especial” que faz o capitalismo se reproduzir, mas a questão que buscamos trabalhar aqui é a seguinte: quais são os processos que possibilitam a existência e manutenção dessa “mercadoria especial” tão importante para a produção capitalista?

De acordo com parte da bibliografia feminista, a resposta está nas atividades cotidianas de limpar, cozinhar, lavar, passar roupas e cuidar de idosos e crianças – usualmente desempenhadas por mulheres. Essas atividades produzem a força de trabalho necessária para produção do Capital, de maneira que o lar se torna uma fábrica de trabalhadores e trabalhadoras (Aruzza, 2019; Bhattacharya, 2017; Federici, 2004 [2017]). Embora seja um fenômeno aparentemente invisível, o processo de produção é apoiado no processo de reprodução social, posto que a manutenção da vida é uma condição necessária para a existência e perpetuação do capitalismo. A reprodução social é amparada em uma articulação da divisão sexual e racial do trabalho, que responsabiliza de maneira desproporcional as mulheres, em especial, mulheres negras pela tarefa de reproduzir a sociedade (Vergès, 2020; Hirata; Kergoat, 2007). Em um contexto de economia neoliberal, a reprodução social fica ainda mais desestabilizada porque o cuidado e o trabalho doméstico têm sua demanda expandida e sobrecarrega esses indivíduos já precarizados. Desse modo, as chamadas “crise do cuidado” e “crise da reprodução social” se interseccionam com as crises geradas pelas contradições internas da economia capitalista (Fraser, 2017). O neoliberalismo amplia a terceirização, informalidade e precarização do trabalho. Mais recentemente, esse cenário foi agudizado com a crise sanitária da Covid-19, em uma imbricação simultânea de crises intitulada por Ricardo Antunes de “Capital Pandêmico” (Antunes, 2020). A pandemia não criou essas condições, mas expôs e intensificou as crises no âmbito do trabalho produtivo e reprodutivo, que são interligadas e co-produzidas. Os desafios contemporâneos relacionados à reprodução nas sociedades neoliberais expandem o escopo das discussões e destacam o trabalho de reprodução como elemento central para compreender as complexidades e antagonismos da vida social como um todo.

As consequências dessas crises podem ser divididas em dois blocos: o primeiro diz respeito ao aumento da necessidade de cuidado não apenas por causa do esfacelamento do estado de bem-estar social, mas também em decorrência das novas doenças e das mudanças climáticas; o segundo bloco tem relação com a racionalidade neoliberal e sua economia monetizada cuja régua do tempo é o trabalho e, no entanto, há pouco interesse e tempo para despender no cuidado de terceiros e de si. A partir disso podemos perceber como o campo da saúde também é afetado por tais crises na medida em que se cria demandas de ordem física e psicológica, uma vez que a sobrecarga de trabalho combinado com a ausência de cuidado produz indivíduos adoecidos. É fundamental abordar como tais fenômenos se estabelecem no Sul Global, onde as condições de emergência do neoliberalismo são distintas daquelas tomadas como alvo por boa parte da literatura sobre crise da reprodução social. Sendo assim, este dossiê pretende abordar análises sobre as configurações da crise da reprodução social no Sul global, buscando reunir tanto textos baseados em pesquisas empíricas quanto aqueles de natureza teórica. Alguns dos temas a serem discutidos são: como as crises se interrelacionam e que desafios colocam em termos do aumento das desigualdades sociais? Como as crises afetam a provisão de cuidado aos diferentes beneficiários (crianças, idosos, pessoas com deficiência, entre outros) e as condições de trabalho das trabalhadoras de cuidado? De que modo o processo de privatização do cuidado tem precarizado ainda mais populações já vulneráveis?

Referências bibliográficas

Antunes, Ricardo. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

Aruzza, Cinzia. Ligações perigosas: casamentos e divórcios entre marxismo e feminismo. São Paulo: Usina, 2019.

Bhattacharya, Tithi. How not to skip class: social reproduction of labor and the global working class. In: BHATTACHARYA, Tithi (org.). Social Reproduction Theory: remapping class, recentering oppression. London: Pluto Press, 2017, p. 68-93.

Federici, Silvia [2004]. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.Fraser, Nancy. Crisis of Care? On the Social-Reproductive Contradictions of Contemporary Feminism. In: BHATTACHARYA, T. (ed). Social Reproduction Theory: remapping class, recentering opression. London: Pluto Press, 2017, p. 21-36.

Guimarães, Nadya Araujo; Hirata, Helena Sumiko. O Gênero do Cuidado: Desigualdades, Significações e Identidades. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2020.

Han, Clara. La vida en deuda. Tiempos de cuidado y violencia en el Chile neoliberal. Santiago de Chile: LOM Ediciones, 2022.

Hirata, Helena.; KERGOAT, Danièle.. Novas Configurações da Divisão Sexual do Trabalho. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, set./dez, 2007.

Hochschild, Arlie. The Global Care Crisis: A Matter of Capital or Commons? American Behavioral Scientist 52(3), 2008, p. 405-425.

Marx Karl [1867]. O Capital: crítica da economia política, Livro 1: o processo de produção de Capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

Tronto, Joan. Caring Democracy: Markets, Equality and Justice. New York and London. New York University Press, 2013.

Vergès Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu editora, 2020.