Pensamentos agonizantes: a escrita heterotópica de Elif Shafak e Filipa Melo
Palavras-chave:
Heterotopia, Surrealismo, Corporalidade, Memória, Elif Shafak, Filipa MeloResumo
Duas escritoras da mesma geração, porém de realidades distintas, utilizam o gênero da ficção policial para falar da realidade da mulher em contextos muito adversos, a partir de uma perspectiva narrativa que Machado de Assis popularizou através de seu famoso Memórias póstumas de Brás Cubas: a história de um defunto autor. Em ambos os casos, temos as histórias de duas defuntas autoras, mulheres comuns que, ao se tornarem vítimas de violência de gênero, passam a organizar relatos de suas vidas a partir da materialidade degradada de seus corpos. Em 10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho (2021), a turca-britânica Elif Shafak (1971) acompanha os últimos instantes de consciência de Leila Tequila, prostituta em Istambul, durante os quais ela reconstrói sua trágica e comovente existência, documentando com dor e beleza as agruras comuns a tantas outras mulheres turcas sujeitas a um sistema social regido pelas regras e amarras do patriarcado. Já em Este é o meu corpo (2004), a luso-angolana Filipa Melo (1972) dá voz às eloquentes revelações de Eduarda a um interlocutor empático, o médico legista que realiza a sua autópsia, traduzida como a escuta sensível de suas memórias, que também se revelam, na ocidental Lisboa, um testemunho de uma realidade opressiva. Apesar da temática macabra, essas obras apresentam uma estranha leveza, um investimento numa escrita memorialista generosa e complexa que expande imprevisivelmente a ideia da modernidade na escrita confessional feminina.
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