Apresentação v. 50, n. 2 (2023)
Palavras-chave:
apresentação, poética dos limitesResumo
No ano de 2019 uma exposição na Bibliothèque Nationale de France (BNF), intitulada « Manuscrits de l’extrême » (Manuscritos do extremo), interrogava as nossas emoções em estado limite a partir, nomeadamente, de cinco eixos temáticos: aprisionamento, perigo, angústia, loucura e paixão. Nela constava uma grande variedade de manuscritos, de personalidades ou escritores célebres, como Blaise Pascal, Marquês de Sade, Napoleão, Nathalie Serraute etc., mas também de homens, mulheres e crianças anônimas, que testemunham aos nossos dias situações de vida extremas. Longe da imagem do manuscrito como fonte de saber, os traços ali expostos portavam o protesto humano quando esta mesma humanidade se encontrava ameaçada. A escritura ali se torna reflexo da sobrevivência diante da solidão, notadamente quando somos confrontados à angústia, ao isolamento, ao luto, ao sentimento passional, ao medo da morte próxima ou aos estados de consciência paralela. O humano parece assim habitar os limites do ser, e a arte, figurada nesses manuscritos, surge como aquilo que expõe os limites definidores da forma do que é o humano, justamente em sua borda, ou melhor, em seu desbordamento.
O número especial da Revista Perspectiva Filosófica da UFPE (Universidade Federal do Pernambuco) « Poéticas dos Limites » retoma esta questão no contexto do confinamento ocasionado pelo Covid-19, quando no final do ano de 2021 e início de 2022 convidou pesquisadores de campos distintos a refletirem sobre a capacidade e os limites da produção artística recente (literária, plástica ou musical), a pensar ou a ritualizar os embates emotivos do contemporâneo (o íntimo e o comum; o exterior e o interior; o estado e o sujeito; a subjetividade e objetividade; o real e a ficção, etc).
Nos três primeiros artigos que compõem o número especial, vemos um exercício de leitura de poetas contemporâneos da cena brasileira mais recente, preocupados com sensibilidades que surgem de espaços reais e virtuais que desapropriam o sujeito. Por vezes, até mesmo os corpos se ausentam, e tal desaparição também provoca a perda de lugar que o sujeito nele anteriormente ocupava. Ou seja, o espaço que ocupávamos no corpo do outro, agora perdido, é ensaiado em outro lugar, na escrita ou na arte, que procura justamente restituí-lo, embora precariamente, ou melhor, em diferimento. Assim, a perda, a ausência, do outro e de si mesmo ante às novas tecnologias, à hostilidade do espaço latino-americano, ou ao luto, são tematizadas nas obras poéticas selecionadas pelos textos críticos que abrem este número especial.
O artigo “Figurações dos limites: o corpo e a escrita em “dois [lugares onde eu não estou]”, de Paloma Vidal”,de autoria de Rita Lenira Bittencourt, parte do pressuposto de Jean-Luc Nancy ao afirmar que vivemos em um tempo de potencialização do lugar do limite. Para a pesquisadora é possível localizar esta tensão ocasionada pelo tempo no livro dois [lugares onde não estou], de Paloma Vidal, em diversas formas, como afirma Bittencourt: “entre a poesia e a prosa, o virtual e o textual, a inércia e o movimento, ou, como o próprio título insinua, entre um “eu” e um dizer do “eu” que é, no mínimo, duplo”. Este Outro é interpelado em seus deslocamentos subjetivos, inclusive o eu poético se desloca, e nesse jogo as vozes são espectros em busca do que Bittencourt nomeará excrição.
Ainda sobre poesia contemporânea, a leitura crítica de Maria Salete Borba, em estudo intitulado “Reflexões sobre a sobrevivência a partir da poesia de Josely Vianna Baptista, dos desenhos de Francisco Faria”, se estabeleceu nas bordas entre arte e literatura. Borba tece leituras sobre poema “onde o céu encontra a terra”, de Josely Vianna Baptista, e uma série homônima de desenhos do artista visual Francisco Faria, e reflete sobre o tema da sobrevivência tanto no poema e como nos desenhos, pensando sobre os significados e pertinência do tema no espaço latino-americano. Com tal gesto, a crítica alcança o atravessamento da própria noção de poesia. Para a estudiosa, ecoando as palavras de Jean-Luc Nancy, a poesia está não apenas no texto, mas em “tudo o que há de elevado e tocante”.
Rodrigo J. Ribeiro Neves, no artigo “Roland Barthes e Carlito Azevedo nas bordas da escrita” também se dedicou ao estudo da poesia contemporânea ao debruçar-se sobre o livro Monodrama, de Carlito Azevedo, em um poema que tematiza a morte da mãe. Em um gesto comparativo, coteja a obra de Azevedo ao Diário de luto, de Roland Barthes, e observa na obra do autor francês, fruto dos fragmentos dos seus dias de luto em 1977, quando perde a mãe, um trabalho de mão dupla. Barthes ao mesmo tempo em que procura lidar com o sofrimento através da escrita, também é atravessado pela escritura, e dela deriva um sujeito desbordado pela perda. A linguagem, para o crítico, “dramatiza a dilaceração do indivíduo”. Movimento este que evita o fim diante da dor, e a escrita neste cenário surge como borda, bote salva-vidas, que retém a dissolução do sujeito ante o desaparecimento do ente amante/amado.
Já saindo da tópica da poesia contemporânea, mas permanecendo no inapreensível do trânsito quando se alcança aquilo que se assemelha ao fim, ao limite, Fernanda Borges e Ricardo Barberena propõem justamente pensar os limites como limiares na poética interartes de Valêncio Xavier, a qual, para os autores, “escancara o hibridismo contemporâneo”, quando opta por fazer uso de fotografia, mapas, anúncios publicitários, panfletos, desenhos, etc., compondo a sintaxe visual e verbal do nominado Frankenstein de Curitiba. No artigo “No limite das artes, da ficção, da escritura: a obra de Valêncio Xavier” compreendemos que o desbordamento de limites se dá no trânsito irreverente pelos diversos meios de arte, do erudito ao popular, mas também entre a realidade e a ficção, e para tal, os estudiosos se debruçam sobre várias obras de Valêncio Xavier, no objetivo de refletir sobre os limiares da criação artística.
No ensaio intitulado "O trabalho das luzes: os letreiros luminosos na obra de Regina Parra", Ana Paula Freitas de Albuquerque e André Cechinel discutem o vínculo entre propaganda, exclusão e exílio conforme retratados no trabalho da artista. Como afirmam os autores, "o trabalho das luzes de Regina Parra é também o trabalho das sombras, daquilo que está oculto, que foi desprezado na nossa constituição histórica e que, no entanto, está impregnado na nossa estrutura social". A investigação dos letreiros de Parra, portanto, revela os conflitos ou o descompasso entre uma publicidade luminosa que muito brilha, mas que convive lado a lado com as pequenas sombras de indivíduos que, dada a sua incapacidade de irradiar num regime 24/7, convivem com o apagamento contínuo de sua existência.
Situado na mesma esfera de um capitalismo crescentemente atencional, Pablo Fontoura, por sua vez, no artigo "Os limites da visão estética" [The Limits of Aesthetic Seeing], examina o conceito de percepção visual a partir de uma perspectiva ao mesmo tempo cognitiva e estética, com o intuito de investigar os limites da atenção visual. Por meio de uma pesquisa empírica que utiliza o rastreamento ocular como forma de observar os procedimentos do comportamento visual humano em uma exposição de artes, o autor indica como a compreensão "[...] dos mecanismos de atenção encoberta e seu impacto na percepção pode levar a insights sobre como experimentamos o mundo esteticamente em vários contextos". Em poucas palavras, o estudo do conceito de atenção visual, quando associado a eventos estéticos, é capaz de oferecer informações importantes até mesmo para os artistas, que podem se valer dos achados para expandir criativamente o campo de suas práticas.
Por fim, nos artigos que fecham este número especial, a arte contemporânea do outro lado do globo torna-se objeto de descrição e análise. São temas de reflexões os fenômenos estéticos que surgem no cenário do confinamento na Rússia, que por vezes encerram estes sujeitos, já encarcerados, no mesmo círculo alienante e/ou familiar.
Assim, no campo das consequências político-estéticas da pandemia da Covid-19, o artigo de Daria Zhurkova, "Acabaram as festas: a música pop russa no contexto do auto-isolamento" [No more parties: Russian pop music in the context of self-isolation], investiga os três tipos fundamentais de canções que mais circularam durante a pandemia na Rússia - músicas de cunho político, romântico e cotidiano -, avaliando "[...] padrões de enredo e sonoridade que são consistentes com a situação extrema ou, inversamente, que tentam ignorá-la". Embora as músicas analisadas tenham servido ao propósito de oferecer um alívio passageiro ou terapêutico às ameaças trazidas pelas incertezas epidêmicas, do ponto de vista estético, segundo a autora, não há nada de muito novo no horizonte, e a indústria de videoclipes, por exemplo, dificilmente trará alguma "mudança estética significativa" como desdobramento da pandemia.
Por sua vez, artigo de Alexandra L. Yurgeneva, intitulado "#izoizolyatsiya: criatividade como um método de socialização" [#izoizolyatsiya: creativity as a method of socialization], analisa uma das formas mais populares de entretenimento na Rússia durante a pandemia, o desafio Izoizolyatsiya, um tipo de "[...] flash mob [que] acumulou características das tradições de tableaux, pintura, fotografia e características específicas das redes sociais". Segundo a autora, o flash mob funcionou como uma forma de compensação para o isolamento e a falta de comunicação durante a pandemia, contribuindo para que as famílias, inclusive, pudessem inaugurar novas formas de sociabilidade entre os seus membros.
Finalmente, no artigo que encerra o presente número especial, "Museus online como uma obra de arte complexa" [Online Museums as a Complex Work of Art], Evallyo Violetta Dmitrievna analisa a diversidade visual e as várias estratégias de comunicação que compõem a experiência de visitação online dos museus russos, de modo a aproximar esses museus justamente, como o título do artigo indica, de uma obra de arte complexa, cujos traços centrais são a integração de diferentes mídias, a variabilidade dos modos de comunicação, a manipulação gamificada dos objetos em exibição e, em alguns casos, a conceitualidade exagerada. Como assinala a autora, embora os museus online, como forma, estejam mais próximos da experiência das mídias de telas do que efetivamente do museu tradicional, "o museu moderno é um organismo complexo, integrado no ambiente sócio-cultural, pronto para novos tipos de comunicação e formas de 'vida'".
Agradecemos à professora, artista e editora da revista, Lorraine Oliveira, que nos fez o generoso convite para organizar este número especial, e ao professor e editor Marcos Silva, bem como a toda equipe da Revista Perspectiva Filosófica, que pacientemente acolheu a proposta aqui concretizada. Agradecemos especialmente às/aos pesquisadoras/es que mantiveram suas contribuições conosco, no decorrer dos anos em que este trabalho foi proposto, modificado e confeccionado, ante os altos e baixos do que coletivamente, mas também individualmente, atravessamos em anos pandêmicos. Desejamos a todas/os boas leituras.
Keli Pacheco, André Cechinel e Leonardo Tonus
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